PSICOLOGIAS
UMA INTRODUÇÃO
AO ESTUDO
DE PSICOLOGIA
ANA MERCÊS BAHIA BOCK
ODAIR FURTADO
MARIA DE LOURDES TRASSI TEIXEIRA
CAPÍTULO 1
A Psicologia ou as psicologias
CIÊNCIA E SENSO COMUM
Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia?
Qualquer um entende um pouco dela. Poderíamos até mesmo dizer que
“de psicólogo e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito popular não
é bem este (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas
parece servir aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a “sua
psicologia”.
Usamos o termo psicologia, no nosso cotidiano, com vários
sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasão do
vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto;
quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de sedução
para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando
procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos
problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas.
Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa
psicologia, usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de
psicologia do senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma
psicologia. O que estamos querendo dizer é que as pessoas,
normalmente, têm um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do
conhecimento acumulado pela Psicologia científica, o que lhes permite
explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vista
psicológico.
É a Psicologia científica que pretendemos apresentar a você. Mas,
antes de iniciarmos o seu estudo, faremos uma exposição da relação
ciência/senso comum; depois falaremos mais detalhadamente sobre
ciência e, assim, esperamos que você compreenda melhor a Psicologia
científica. [pg. 15]
O SENSO COMUM:
CONHECIMENTO DA REALIDADE
Existe um domínio da vida que pode ser entendido como vida por
excelência: é a vida do cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as
coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que sentimos a realidade.
Neste instante estou lendo um livro de Psicologia, logo mais estarei
numa sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto
isso, tenho sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um
sono irresistível e preciso de muita força de vontade para não dormir em
plena aula; lembro-me de que havia prometido chegar cedo para o
almoço. Todos esses acontecimentos denunciam que estamos vivos. Já
a ciência é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura
compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo
sistemático.
Quando fazemos ciência,
baseamo-nos na realidade cotidiana e
pensamos sobre ela. Afastamo-nos
dela para refletir e conhecer além de
suas aparências. O cotidiano e o
conhecimento científico que temos da
realidade aproximam-se e se afastam:
aproximam-se porque a ciência se
refere ao real; afastam-se porque a
ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a
ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de
investigação — o que permite a construção do conhecimento científico
sobre o real.
Para compreender isso melhor, pense na abstração (no
distanciamento e trabalho mental) que Newton teve de fazer para,
partindo da fruta que caía da árvore (fato do cotidiano), formular a lei da
gravidade (fato científico).
Ocorre que, mesmo o
mais especializado dos
cientistas, quando sai de
seu laboratório, está
submetido à dinâmica do
cotidiano, que cria suas
próprias “teorias” a partir
das teorias científicas, seja
como forma de “simplificálas”
para o uso no dia-a-dia,
ou como sua maneira peculiar de interpretar fatos, a despeito das
considerações feitas pela ciência. Todos nós — estudantes, psicólogos,
físicos, artistas, operários, teólogos — vivemos a maior parte do tempo
esse cotidiano e as suas teorias, isto é, aceitamos as regras do seu jogo.
[pg. 16]
O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para
manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá
razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e, muitas
vezes, desconhecendo completamente as leis da termodinâmica.
Quando alguém em casa reclama de dores no fígado, ela faz um chá de
boldo, que é uma planta medicinal já usada pelos avós de nossos avós,
sem, no entanto, conhecer o princípio ativo de suas folhas nas doenças
hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E nós mesmos, quando
precisamos atravessar uma avenida movimentada, com o tráfego de
Mesmo não dispondo de instrumentos, sabemos avaliar a
distância e a velocidade de um veículo quando
atravessamos a rua.
veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distância e
a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Até hoje não
conhecemos ninguém que usasse máquina de calcular ou fita métrica
para essa tarefa. Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando no
nosso cotidiano é chamado de senso comum. Sem esse conhecimento
intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida no dia-a-dia
seria muito complicada.
A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento
espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente
que as coisas tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de
descobrir diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a
subir; que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de
nós e que, para fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos
de eletricidade.
O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento,
percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando
estabelecida, passa de geração para geração. Assim, aprendemos com
nossos pais a atravessar uma rua, a fazer o liqüidificador funcionar, a
plantar alimentos na época e de maneira correta, a conquistar a pessoa
que desejamos e assim por diante.
E é nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum
produz suas próprias “teorias”; na realidade, um conhecimento que,
numa interpretação livre, poderíamos chamar de teorias médicas, físicas,
psicológicas etc. [pg. 17]
SENSO COMUM: UMA VISÃO-DE-MUNDO
Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção
característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de
conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber
humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito
mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada,
produzindo uma determinada visão-de-mundo.
O que estamos querendo mostrar a você é que o senso comum
integra, de um modo precário (mas é esse o seu modo), o conhecimento
humano. E claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva um certo
tempo para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja
absorvido pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos
termos como “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”,
estamos usando termos definidos pela Psicologia científica. Não nos
preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de
ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximos do conceito
científico mas, na maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são
exemplos da apropriação que o senso comum faz da ciência.
ÁREAS DO CONHECIMENTO
Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente
para as exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem,
desde os tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste
planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para
que ele dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por
volta do século
que ainda hoje são considerados difíceis por qualquer jovem colegial. Os
gregos precisavam entender esses cálculos para resolver seus
problemas agrícolas, arquitetônicos, navais etc. Era uma questão de
sobrevivência. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se
especializando cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação que
permitiu ao homem atingir a Lua. A este tipo de conhecimento, que
definiremos com mais cuidado logo adiante,
chamamos de ciência.
Mas o senso comum e a ciência não
são as únicas formas de conhecimento que o
homem possui para descobrir e interpretar a
realidade.
Povos antigos, e entre eles cabe
Registro de crenças e tradições
para as futuras gerações.
sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem e com o
significado da existência humana. As especulações em torno desse tema
formaram um corpo de [pg. 18]
conhecimentos denominado filosofia. A
formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem,
seus mistérios, princípios morais, forma um outro corpo de conhecimento
humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito
conhecido traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para
muitos um modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do
conhecimento religioso judaico-cristão. Um outro livro semelhante é o
livro sagrado dos hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga
língua clássica da Índia), significa conhecimento.
Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de
sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua
própria figura e a figura da caça, criando uma expressão do
conhecimento que traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos
arte a esse tipo de conhecimento.
Arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são domínios do
conhecimento humano.
A PSICOLOGIA CIENTÍFICA
Apesar de reconhecermos a existência de uma psicologia do senso
comum e, de certo modo, estarmos preocupados em defini-la, é com a
outra psicologia que este livro deverá ocupar-se — a Psicologia
científica. Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse
demarcar o campo de atuação de cada uma, sem confundi-las.
Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais
árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por
ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a
Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.
O QUE É CIÊNCIA
A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre
fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de
uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser
obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se
permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto
dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado
conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência.
Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e
desenvolvido. [pg. 19]
Essa característica da produção científica possibilita sua
continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo
anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se
novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência
caracteriza-se como um processo.
Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele
nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado
a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes
deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool
apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos
dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.
A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à
objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e
isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.
Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas
específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade
fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o
conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de
características é o que permite que denominemos científico a um
conjunto de conhecimentos.
OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA
Como dissemos
anteriormente, um
conhecimento, para ser
considerado científico, requer
um objeto específico de estudo.
O objeto da Astronomia são os
astros, e o objeto da Biologia
são os seres vivos. Essa
classificação bem geral
demonstra que é possível tratar
o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível
isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista-observador
está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos-luz de
distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o mínimo risco de
confundir-se com o fenômeno que está estudando. [pg. 20]
O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia,
a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o
homem.
Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a
Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico
de estudo da Psicologia?
Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá:
“O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a
palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de
estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência
humana, e outros, ainda, a personalidade.
DIVERSIDADE DE OBJETOS DA PSICOLOGIA
A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato de
este campo do conhecimento ter-se constituído como área do
conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a
Observatório Nacional — Rio de Janeiro. Estudar o
fenômeno físico é pensar sobre algo externo ao
homem. Estudar o homem é pensar sobre si mesmo.
despeito de existir há muito tempo na
Filosofia enquanto preocupação humana.
Esse fato é importante, já que a ciência se
caracteriza pela exatidão de sua construção
teórica, e, quando uma ciência é muito
nova, ela não teve tempo ainda de
apresentar teorias acabadas e definitivas,
que permitam determinar com maior
precisão seu objeto de estudo.
Um outro motivo que contribui para
dificultar uma clara definição de objeto da
Psicologia é o fato de o cientista — o
pesquisador — confundir-se com o objeto a
ser pesquisado. No sentido mais amplo, o
objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador
está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de
homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a
sua pesquisa
concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos
filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o
homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se
vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem
natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o
homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que [pg. 21]
cabe
então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida (veja capítulo 10).
Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas
e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja
submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser
datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.
Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as
ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até
agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem
Jean-Jacques Rousseau, filósofo
francês
adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela.
Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem
várias concepções de homem, diríamos simplificada-mente que, no caso
da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo
conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma
diversidade de objetos de estudo.
Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os
fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis
ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos
mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O
objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de
aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao
estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o
psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de
seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.
Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia
como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia,
mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.
A SUBJETIVIDADE COMO OBJETO DA PSICOLOGIA
Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do
objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma definição
que lhe sirva como referência para os próximos capítulos, uma vez que
você irá se deparar com diversos enfoques que trazem definições
específicas desse objeto, (o comportamento, o inconsciente, a
consciência etc.).
A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos
das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um
desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada
especialidade — a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa
matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos [pg. 22]
distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o
estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de
contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.
Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas
expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos
sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas
(porque somos todos assim) — é o homem-corpo, homem-pensamento,
homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo
subjetividade.
A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de
nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando
as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos
identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na
medida em que os elementos que a constituem são experienciados no
campo comum da objetividade social. Esta síntese — a subjetividade —
é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente
pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua
constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e
comportamentais.
O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por
nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos
fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular.
Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a
cada dia.
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar,
amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou
filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto
Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas
não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de
descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática,
trabalha e estuda, é corinthiano fanático, adora comer sushi e navegar
pela Internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade.
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao
indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do
mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre
este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando
o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.
Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o
movimentam permanentemente com suas intervenções; um [pg. 23]
mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão
permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para
constituírem suas subjetividades.
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é
fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o
homem pode promover novas formas de
subjetividade, recusando-se ao assujeitamento
e à perda de memória imposta pela fugacidade
da informação; recusando a massificação que
exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação
social condicionada ao consumo, a
medicalização do sofrimento. Nesse sentido,
retomamos a utopia que cada homem pode
participar na construção do seu destino e de
sua coletividade.
Por fim, podemos dizer que estudar a
subjetividade, nos tempos atuais, é tentar
compreender a produção de novos modos de
ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja
fabricação é social e histórica. O estudo dessas
novas subjetividades vai desvendando as
relações do cultural, do político, do econômico
e do histórico na produção do mais íntimo e do
mais observável no homem — aquilo que o
captura, submete-o ou mobiliza-o para pensar
e agir sobre os efeitos das formas de
submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel
Foucault).
O movimento e a transformação são os elementos básicos de
toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em
Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado
e rico, o que aqui vale a pena registrar:
“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e
desafinam”.
Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de
Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram
terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois
estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente
porque a subjetividade — este mundo interno construído pelo homem
como síntese de suas determinações — não cessará de [pg. 24]
se
modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para
renová-la.
Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre
fui — eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias
transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e
ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua
transformação (veja capítulo 13) e, por isso, ela pode passar
despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você
cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de
atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela,
suas vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade.
Isso acontece com todos nós.
Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja
subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto
da Psicologia.
A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das
Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia,
pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de
maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos
e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a
Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.
É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a
forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas
diferentes escolas psicológicas (veja capítulos 3, 4, 5 e 6). No momento,
pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam
formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma
totalidade — o ser humano: o seu mundo interno e as suas
manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia
que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado (veja
capítulo 10). Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da
comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que
o homem que compreende a História (o mundo externo) também
compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que
compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo
e criar novas rotas e utopias.
Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao
campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais.
Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e
condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à
Antropologia, à Economia etc. [pg. 25]
A PSICOLOGIA E O MISTICISMO
A Psicologia, como área da Ciência, vem se desenvolvendo na
história desde 1875, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro
Laboratório de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, na
Alemanha. Esse marco histórico significou o desligamento das idéias
psicológicas de idéias abstratas e espiritualistas, que defendiam a
existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida
psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu
vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem
autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento
e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.
Hoje, a Psicologia ainda não consegue explicar muitas coisas
sobre o homem, pois é uma área da Ciência relativamente nova (com
pouco mais de cem anos). Além disso, sabe-se que a Ciência não
esgotará o que há para se conhecer, pois a realidade está em
permanente movimento e novas perguntas surgem a cada dia, o homem
está em movimento e em transformação, colocando também novas
perguntas para a Psicologia. A invenção dos computadores, por
exemplo, trouxe e trará mudanças em nossas formas de pensamento,
em nossa inteligência, e a Psicologia precisará absorver essas
transformações em seu quadro teórico.
Alguns dos “desconhecimentos” da Psicologia têm levado os
psicólogos a buscarem respostas em outros campos do saber humano.
Com isso, algumas práticas não-psicológicas têm sido associadas às
práticas psicológicas. O tarô, a astrologia, a quiromancia, a numerologia,
entre outras práticas adivinhatórias e/ou místicas, têm sido associadas
ao fazer e ao saber psicológico.
Estas não são práticas da Psicologia. São outras formas de saber
— de saber sobre o humano — que não podem ser confundidas com a
Psicologia, pois:
• não são construídas no campo da Ciência, a partir do método e dos
princípios científicos;
• estão em oposição aos princípios da Psicologia, que vê não só o
homem como ser autônomo, que se desenvolve e se constitui a partir
de sua relação com o mundo social e cultural, mas também o homem
sem destino pronto, que constrói seu futuro ao agir sobre o mundo. As
práticas místicas têm pressupostos opostos, pois nelas há a concepção
de destino, da existência de forças que não estão no campo do
humano e do mundo material.
A Psicologia, ao relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz
de enfrentá-los sem preconceitos, reconhecendo que o homem [pg. 26]
construiu muitos “saberes” em busca de sua felicidade. Mas é preciso
demarcar nossos campos. Esses saberes não estão no campo da
Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo.
É possível estudar as práticas adivinhatórias e descobrir o que elas
têm de eficiente, de acordo com os critérios científicos, e aprimorar tais
aspectos para um uso eficiente e racional. Nem sempre esses critérios
científicos têm sido observados e alguns psicólogos acabam por usar tais
práticas sem o devido cuidado e observação. Esses casos, seja daquele
que usa a prática mística como acompanhamento psicológico, seja o do
psicólogo que usa desse expediente sem critério científico comprovado,
são previstos pelo código de ética dos psicólogos e, por isso, passíveis
de punição. No primeiro caso, como prática de charlatanismo e, no
segundo, como desempenho inadequado da profissão.
Entretanto, é preciso ponderar que esse campo fronteiriço entre a
Psicologia científica e a especulação mística deve ser tratado com o
devido cuidado. Quando se trata de pessoa, psicóloga ou não, que
decididamente usa do expediente das práticas místicas como forma de
tirar proveito pecuniário ou de qualquer outra ordem, prejudicando
terceiros, temos um caso de polícia e a punição é salutar. Mas muitas
vezes não é possível caracterizar a atuação daqueles que se utilizam
dessas práticas de forma tão clara. Nestes casos, não podemos tornar
absoluto o conhecimento científico como o “conhecimento por
excelência” e dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar um tribunal
semelhante ao da Santa Inquisição. E preciso reconhecer que pessoas
que acreditam em práticas adivinhatórias ou místicas têm o direito de
consultar e de serem consultadas, e também temos de reconhecer, nós
cientistas, que não sabemos muita coisa sobre o psiquismo humano e
que, muitas vezes, novas descobertas seguem estranhos e insondáveis
caminhos. O verdadeiro cientista deve ter os olhos abertos para o novo.
Enfim, nosso alerta aqui vai em dois sentidos:
• Não se deve misturar a Psicologia com práticas adivinhatórias ou
místicas que estão baseadas em pressupostos diversos e opostos ao
da Psicologia.
• “Mente é como pára-quedas: melhor aberta.” É preciso estar aberto
para o novo, atento a novos conhecimentos que, tendo sido estudados
no âmbito da Ciência, podem trazer novos saberes, ou seja, novas
respostas para perguntas ainda não respondidas.
A Ciência, como uma das formas de saber do homem, tem seu
campo de atuação com métodos e princípios próprios, mas, como forma
de saber, não está pronta e nunca estará. A Ciência é, na verdade, [pg.27]
um processo permanente de conhecimento do mundo, um exercício
de diálogo entre o pensamento humano e a realidade, em todos os seus
aspectos. Nesse sentido, tudo o que ocorre com o homem é motivo de
interesse para a Ciência, que deve aplicar seus princípios e métodos
para construir respostas.
Texto Complementar
A PSICOLOGIA DOS PSICÓLOGOS
(...) somos obrigados a renunciar à pretensão de determinar para
as múltiplas investigações psicológicas um objeto (um campo de fatos)
unitário e coerente. Conseqüentemente, e por sólidas razões, não
somente históricas mas doutrinárias, torna-se impossível à Psicologia
assegurar-se uma unidade metodológica. (...)
Por isso, talvez fosse preferível falarmos, ao invés de “psicologia”,
em “ciências psicológicas”. Porque os adjetivos que acompanham o
termo “psicologia” podem especificar, ao mesmo tempo, tanto um
domínio de pesquisa (psicologia diferencial), um estilo metodológico
(psicologia clínica), um campo de práticas sociais (orientação,
reeducação, terapia de distúrbios comportamentais etc.), quanto
determinada escola de pensamento que chega a definir, para seu próprio
uso, tanto sua problemática quanto seus conceitos e instrumentos de
pesquisa. (...) não devemos estranhar que a unidade da Psicologia, hoje,
nada mais seja que uma expressão cômoda, a expressão de um
pacifismo ao mesmo tempo prático e enganador. Donde não haver
nenhum inconveniente em falarmos de “psicologias” no plural. Numa
época de mutação acelerada como a nossa, a Psicologia se situa no
imenso domínio das ciências “exatas”, biológicas, naturais e humanas.
Há diversidade de domínio e diversidade de métodos. Uma coisa, porém,
precisa ficar clara: os problemas psicológicos não são feitos para os
métodos; os métodos é que são feitos para os problemas. (...)
Interessa-nos indicar uma razão central pela qual a Psicologia se
reparte em tantas tendências ou escolas: a tendência organicista, a
tendência fisicalista, a tendência psico-sociológica, a tendência
psicanalítica etc. Qual o obstáculo supremo impedindo que todas essas
tendências continuem a constituir “escolas” cada vez mais fechadas, a
ponto de desagregarem a outrora chamada “ciência psicológica”? A meu
ver, esse obstáculo é devido ao fato de nenhum cientista,
conseqüentemente, nenhum psicólogo, poder considerar-se um cientista
“puro”. Como qualquer cientista, todo psicólogo está comprometido com
uma posição filosófica ou ideológica. Este fato tem uma importância
fundamental nos problemas estudados pela Psicologia. Esta não é a
mesma em todos os países. Depende dos meios culturais. Suas
variações dependem da diversidade das escolas e das ideologias. Os
problemas psicológicos se diversificam segundo as correntes ideológicas
ou filosóficas venham reforçar esta ou aquela orientação na pesquisa,
consigam ocultar ou impedir este ou aquele aspecto dos domínios a
serem explorados ou consigam esterilizar esta ou aquela pesquisa,
opondo-se implícita ou explicitamente a seu desenvolvimento. (...)
Hilton Japiassu. A psicologia dos psicólogos.
2. ed. Rio de Janeiro, Imago, 1983. p. 24-6. [pg. 28]
Questões
1. Qual a relação entre cotidiano e conhecimento científico? Dê um
exemplo de uso cotidiano do conhecimento científico (em qualquer
área).
2. Explique o que é senso comum. Dê um exemplo desse tipo de
conhecimento.
3. Explique o que você entendeu por visão-de-mundo.
4. Cite alguns exemplos de conhecimentos da Psicologia apropriados
pelo senso comum.
5. Quais os domínios do conhecimento humano? O que cada um deles
abrange?
6. Quais as características atribuídas ao conhecimento científico?
7. Quais as diferenças entre senso comum e conhecimento científico?
8. Quais são os possíveis objetos de estudo da Psicologia?
9. Quais os motivos responsáveis pela diversidade de objetos para a
Psicologia?
10. Qual a matéria-prima da Psicologia?
11. O que é subjetividade?
12. Por que a subjetividade não é inata?
13. Por que as práticas místicas não compõem o campo da Psicologia
científica?
Atividades em grupo
1. Você leu, no texto, que existem a Psicologia científica e a psicologia
do senso comum. Supondo que o seu contato até o momento só tenha
sido com a psicologia do senso comum, relacione situações do
cotidiano em que você ou as pessoas com quem convive usem essa
psicologia.
2. Baseando-se no texto e na leitura complementar, responda por que
falamos
3. Discuta nossa apresentação da Psicologia científica — sua matériaprima
e seu enfoque. Para isso, retome as respostas que cada
membro do grupo deu às questões 10, 11, 12 e 13.
4. Verifique quantas pessoas do grupo já procuraram práticas
adivinhatórias. A partir da leitura do texto, discuta a experiência. [pg.29]
Bibliografia indicada
Para o aluno
Para o aprofundamento da relação ciência e senso comum,
indicamos o capítulo 10 do livro Filosofando — introdução à Filosofia,
de Maria Lúcia Aranha e Maria Helena P. Martins (São Paulo, Moderna,
1987), e o capítulo 3 do livro Fundamentos da Filosofia — ser, saber e
fazer, de Gilberto Cotrim (São Paulo, Saraiva, 1993).
Esses dois livros podem ainda ser utilizados para explorar melhor o
método científico (no Filosofando — introdução à Filosofia, o capítulo
14, e no Fundamentos da Filosofia, o capítulo 12).
Quanto ao aprofundamento da questão do objeto das ciências
humanas, sugerimos ainda as partes 1 e 2 do capítulo 16 do
Filosofando — introdução à Filosofia.
Para o professor
Para o aprofundamento das questões colocadas no texto,
sugerimos a introdução do livro A construção da realidade, de Peter
Berger e Thomas Luckmann (Petrópolis, Vozes, 1983), onde os autores
discutem e apresentam com muita profundidade a relação
realidade/conhecimento.
Quanto à questão específica da Psicologia e psicologias, seus
objetos, seus métodos e a definição do fenômeno, indicamos o livro A
Psicologia dos psicólogos, de Hilton Japiassu (Rio de Janeiro, Imago,
1983). Esse livro supõe um bom conhecimento das teorias e sistemas
em Psicologia, já que procura discuti-los do ponto de vista metodológico.
Não é uma leitura fácil, mas importantíssima para os psicólogos.
Ressaltamos a introdução e o capítulo 1.
Indicamos, ainda, para aprofundamento da questão da Psicologia,
o livro Psicologia da conduta, de José Bleger (Porto Alegre, Artes
Médicas, 1987), que aborda a Psicologia do ponto de vista de seu objeto
de estudo. [pg. 30]