terça-feira, 25 de novembro de 2008

capitulo1

PSICOLOGIAS

UMA INTRODUÇÃO

AO ESTUDO

DE PSICOLOGIA

ANA MERCÊS BAHIA BOCK

ODAIR FURTADO

MARIA DE LOURDES TRASSI TEIXEIRA

CAPÍTULO 1

A Psicologia ou as psicologias

CIÊNCIA E SENSO COMUM

Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia?

Qualquer um entende um pouco dela. Poderíamos até mesmo dizer que

“de psicólogo e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito popular não

é bem este (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas

parece servir aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a “sua

psicologia”.

Usamos o termo psicologia, no nosso cotidiano, com vários

sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasão do

vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto;

quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de sedução

para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando

procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos

problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas.

Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa

psicologia, usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de

psicologia do senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma

psicologia. O que estamos querendo dizer é que as pessoas,

normalmente, têm um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do

conhecimento acumulado pela Psicologia científica, o que lhes permite

explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vista

psicológico.

É a Psicologia científica que pretendemos apresentar a você. Mas,

antes de iniciarmos o seu estudo, faremos uma exposição da relação

ciência/senso comum; depois falaremos mais detalhadamente sobre

ciência e, assim, esperamos que você compreenda melhor a Psicologia

científica. [pg. 15]

O SENSO COMUM:

CONHECIMENTO DA REALIDADE

Existe um domínio da vida que pode ser entendido como vida por

excelência: é a vida do cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as

coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que sentimos a realidade.

Neste instante estou lendo um livro de Psicologia, logo mais estarei

numa sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto

isso, tenho sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um

sono irresistível e preciso de muita força de vontade para não dormir em

plena aula; lembro-me de que havia prometido chegar cedo para o

almoço. Todos esses acontecimentos denunciam que estamos vivos. Já

a ciência é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura

compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo

sistemático.

Quando fazemos ciência,

baseamo-nos na realidade cotidiana e

pensamos sobre ela. Afastamo-nos

dela para refletir e conhecer além de

suas aparências. O cotidiano e o

conhecimento científico que temos da

realidade aproximam-se e se afastam:

aproximam-se porque a ciência se

refere ao real; afastam-se porque a

ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a

ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de

investigação — o que permite a construção do conhecimento científico

sobre o real.

Para compreender isso melhor, pense na abstração (no

distanciamento e trabalho mental) que Newton teve de fazer para,

partindo da fruta que caía da árvore (fato do cotidiano), formular a lei da

gravidade (fato científico).

Ocorre que, mesmo o

mais especializado dos

cientistas, quando sai de

seu laboratório, está

submetido à dinâmica do

cotidiano, que cria suas

próprias “teorias” a partir

das teorias científicas, seja

como forma de “simplificálas”

para o uso no dia-a-dia,

ou como sua maneira peculiar de interpretar fatos, a despeito das

considerações feitas pela ciência. Todos nós — estudantes, psicólogos,

físicos, artistas, operários, teólogos — vivemos a maior parte do tempo

esse cotidiano e as suas teorias, isto é, aceitamos as regras do seu jogo.

[pg. 16]

O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para

manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá

razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e, muitas

vezes, desconhecendo completamente as leis da termodinâmica.

Quando alguém em casa reclama de dores no fígado, ela faz um chá de

boldo, que é uma planta medicinal já usada pelos avós de nossos avós,

sem, no entanto, conhecer o princípio ativo de suas folhas nas doenças

hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E nós mesmos, quando

precisamos atravessar uma avenida movimentada, com o tráfego de

Mesmo não dispondo de instrumentos, sabemos avaliar a

distância e a velocidade de um veículo quando

atravessamos a rua.

veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distância e

a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Até hoje não

conhecemos ninguém que usasse máquina de calcular ou fita métrica

para essa tarefa. Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando no

nosso cotidiano é chamado de senso comum. Sem esse conhecimento

intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida no dia-a-dia

seria muito complicada.

A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento

espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente

que as coisas tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de

descobrir diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a

subir; que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de

nós e que, para fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos

de eletricidade.

O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento,

percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando

estabelecida, passa de geração para geração. Assim, aprendemos com

nossos pais a atravessar uma rua, a fazer o liqüidificador funcionar, a

plantar alimentos na época e de maneira correta, a conquistar a pessoa

que desejamos e assim por diante.

E é nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum

produz suas próprias “teorias”; na realidade, um conhecimento que,

numa interpretação livre, poderíamos chamar de teorias médicas, físicas,

psicológicas etc. [pg. 17]

SENSO COMUM: UMA VISÃO-DE-MUNDO

Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção

característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de

conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber

humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito

mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada,

produzindo uma determinada visão-de-mundo.

O que estamos querendo mostrar a você é que o senso comum

integra, de um modo precário (mas é esse o seu modo), o conhecimento

humano. E claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva um certo

tempo para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja

absorvido pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos

termos como “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”,

estamos usando termos definidos pela Psicologia científica. Não nos

preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de

ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximos do conceito

científico mas, na maioria das vezes, nem o sabemos. Esses são

exemplos da apropriação que o senso comum faz da ciência.

ÁREAS DO CONHECIMENTO

Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente

para as exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem,

desde os tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste

planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para

que ele dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por

volta do século 4 a.C, já dominavam complicados cálculos matemáticos,

que ainda hoje são considerados difíceis por qualquer jovem colegial. Os

gregos precisavam entender esses cálculos para resolver seus

problemas agrícolas, arquitetônicos, navais etc. Era uma questão de

sobrevivência. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se

especializando cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação que

permitiu ao homem atingir a Lua. A este tipo de conhecimento, que

definiremos com mais cuidado logo adiante,

chamamos de ciência.

Mas o senso comum e a ciência não

são as únicas formas de conhecimento que o

homem possui para descobrir e interpretar a

realidade.

Povos antigos, e entre eles cabe

Registro de crenças e tradições

para as futuras gerações.

sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem e com o

significado da existência humana. As especulações em torno desse tema

formaram um corpo de [pg. 18]

conhecimentos denominado filosofia. A

formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem,

seus mistérios, princípios morais, forma um outro corpo de conhecimento

humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito

conhecido traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para

muitos um modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do

conhecimento religioso judaico-cristão. Um outro livro semelhante é o

livro sagrado dos hindus: Livro dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga

língua clássica da Índia), significa conhecimento.

Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de

sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua

própria figura e a figura da caça, criando uma expressão do

conhecimento que traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos

arte a esse tipo de conhecimento.

Arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são domínios do

conhecimento humano.

A PSICOLOGIA CIENTÍFICA

Apesar de reconhecermos a existência de uma psicologia do senso

comum e, de certo modo, estarmos preocupados em defini-la, é com a

outra psicologia que este livro deverá ocupar-se — a Psicologia

científica. Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse

demarcar o campo de atuação de cada uma, sem confundi-las.

Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais

árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por

ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a

Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.

O QUE É CIÊNCIA

A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre

fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de

uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser

obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se

permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto

dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado

conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência.

Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e

desenvolvido. [pg. 19]

Essa característica da produção científica possibilita sua

continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo

anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se

novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência

caracteriza-se como um processo.

Pense no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele

nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado

a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes

deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool

apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos

dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.

A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à

objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e

isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.

Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas

específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade

fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o

conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de

características é o que permite que denominemos científico a um

conjunto de conhecimentos.

OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA

Como dissemos

anteriormente, um

conhecimento, para ser

considerado científico, requer

um objeto específico de estudo.

O objeto da Astronomia são os

astros, e o objeto da Biologia

são os seres vivos. Essa

classificação bem geral

demonstra que é possível tratar

o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível

isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista-observador

está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos-luz de

distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o mínimo risco de

confundir-se com o fenômeno que está estudando. [pg. 20]

O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia,

a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o

homem.

Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a

Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico

de estudo da Psicologia?

Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá:

“O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a

palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de

estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência

humana, e outros, ainda, a personalidade.

DIVERSIDADE DE OBJETOS DA PSICOLOGIA

A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato de

este campo do conhecimento ter-se constituído como área do

conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a

Observatório Nacional — Rio de Janeiro. Estudar o

fenômeno físico é pensar sobre algo externo ao

homem. Estudar o homem é pensar sobre si mesmo.

despeito de existir há muito tempo na

Filosofia enquanto preocupação humana.

Esse fato é importante, já que a ciência se

caracteriza pela exatidão de sua construção

teórica, e, quando uma ciência é muito

nova, ela não teve tempo ainda de

apresentar teorias acabadas e definitivas,

que permitam determinar com maior

precisão seu objeto de estudo.

Um outro motivo que contribui para

dificultar uma clara definição de objeto da

Psicologia é o fato de o cientista — o

pesquisador — confundir-se com o objeto a

ser pesquisado. No sentido mais amplo, o

objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador

está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de

homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a

sua pesquisa em Psicologia. Isso ocorre porque há diferentes

concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos

filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o

homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se

vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem

natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o

homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que [pg. 21]

cabe

então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida (veja capítulo 10).

Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas

e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja

submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser

datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as

ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área e até

agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem

Jean-Jacques Rousseau, filósofo

francês

adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela.

Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem

várias concepções de homem, diríamos simplificada-mente que, no caso

da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo

conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma

diversidade de objetos de estudo.

Por outro lado, essa diversidade de objetos justifica-se porque os

fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis

ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos

mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O

objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de

aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao

estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o

psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de

seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.

Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia

como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia,

mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.

A SUBJETIVIDADE COMO OBJETO DA PSICOLOGIA

Considerando toda essa dificuldade na conceituação única do

objeto de estudo da Psicologia, optamos por apresentar uma definição

que lhe sirva como referência para os próximos capítulos, uma vez que

você irá se deparar com diversos enfoques que trazem definições

específicas desse objeto, (o comportamento, o inconsciente, a

consciência etc.).

A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos

das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um

desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada

especialidade — a Economia, a Política, a História etc. — trabalha essa

matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos [pg. 22]

distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o

estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de

contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.

Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas

expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos

sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas

(porque somos todos assim) — é o homem-corpo, homem-pensamento,

homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo

subjetividade.

A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de

nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando

as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos

identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na

medida em que os elementos que a constituem são experienciados no

campo comum da objetividade social. Esta síntese — a subjetividade —

é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente

pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua

constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e

comportamentais.

O mundo social e cultural, conforme vai sendo experienciado por

nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos

fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular.

Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a

cada dia.

A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar,

amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou

filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto

Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas

não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de

descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática,

trabalha e estuda, é corinthiano fanático, adora comer sushi e navegar

pela Internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade.

Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao

indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do

mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre

este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando

o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.

Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o

movimentam permanentemente com suas intervenções; um [pg. 23]

mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão

permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para

constituírem suas subjetividades.

De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é

fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o

homem pode promover novas formas de

subjetividade, recusando-se ao assujeitamento

e à perda de memória imposta pela fugacidade

da informação; recusando a massificação que

exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação

social condicionada ao consumo, a

medicalização do sofrimento. Nesse sentido,

retomamos a utopia que cada homem pode

participar na construção do seu destino e de

sua coletividade.

Por fim, podemos dizer que estudar a

subjetividade, nos tempos atuais, é tentar

compreender a produção de novos modos de

ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja

fabricação é social e histórica. O estudo dessas

novas subjetividades vai desvendando as

relações do cultural, do político, do econômico

e do histórico na produção do mais íntimo e do

mais observável no homem — aquilo que o

captura, submete-o ou mobiliza-o para pensar

e agir sobre os efeitos das formas de

submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel

Foucault).

O movimento e a transformação são os elementos básicos de

toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em

Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de modo muito adequado

e rico, o que aqui vale a pena registrar:

“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre

iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e

desafinam”.

Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de

Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram

terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois

estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente

porque a subjetividade — este mundo interno construído pelo homem

como síntese de suas determinações — não cessará de [pg. 24]

se

modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para

renová-la.

Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre

fui — eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias

transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e

ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua

transformação (veja capítulo 13) e, por isso, ela pode passar

despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você

cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de

atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela,

suas vivências subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade.

Isso acontece com todos nós.

Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja

subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto

da Psicologia.

A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das

Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia,

pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de

maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos

e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a

Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.

É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a

forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas

diferentes escolas psicológicas (veja capítulos 3, 4, 5 e 6). No momento,

pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam

formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma

totalidade — o ser humano: o seu mundo interno e as suas

manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia

que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado (veja

capítulo 10). Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da

comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que

o homem que compreende a História (o mundo externo) também

compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que

compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo

e criar novas rotas e utopias.

Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao

campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais.

Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e

condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à

Antropologia, à Economia etc. [pg. 25]

A PSICOLOGIA E O MISTICISMO

A Psicologia, como área da Ciência, vem se desenvolvendo na

história desde 1875, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro

Laboratório de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, na

Alemanha. Esse marco histórico significou o desligamento das idéias

psicológicas de idéias abstratas e espiritualistas, que defendiam a

existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida

psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu

vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem

autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento

e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.

Hoje, a Psicologia ainda não consegue explicar muitas coisas

sobre o homem, pois é uma área da Ciência relativamente nova (com

pouco mais de cem anos). Além disso, sabe-se que a Ciência não

esgotará o que há para se conhecer, pois a realidade está em

permanente movimento e novas perguntas surgem a cada dia, o homem

está em movimento e em transformação, colocando também novas

perguntas para a Psicologia. A invenção dos computadores, por

exemplo, trouxe e trará mudanças em nossas formas de pensamento,

em nossa inteligência, e a Psicologia precisará absorver essas

transformações em seu quadro teórico.

Alguns dos “desconhecimentos” da Psicologia têm levado os

psicólogos a buscarem respostas em outros campos do saber humano.

Com isso, algumas práticas não-psicológicas têm sido associadas às

práticas psicológicas. O tarô, a astrologia, a quiromancia, a numerologia,

entre outras práticas adivinhatórias e/ou místicas, têm sido associadas

ao fazer e ao saber psicológico.

Estas não são práticas da Psicologia. São outras formas de saber

— de saber sobre o humano — que não podem ser confundidas com a

Psicologia, pois:

• não são construídas no campo da Ciência, a partir do método e dos

princípios científicos;

• estão em oposição aos princípios da Psicologia, que vê não só o

homem como ser autônomo, que se desenvolve e se constitui a partir

de sua relação com o mundo social e cultural, mas também o homem

sem destino pronto, que constrói seu futuro ao agir sobre o mundo. As

práticas místicas têm pressupostos opostos, pois nelas há a concepção

de destino, da existência de forças que não estão no campo do

humano e do mundo material.

A Psicologia, ao relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz

de enfrentá-los sem preconceitos, reconhecendo que o homem [pg. 26]

construiu muitos “saberes” em busca de sua felicidade. Mas é preciso

demarcar nossos campos. Esses saberes não estão no campo da

Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo.

É possível estudar as práticas adivinhatórias e descobrir o que elas

têm de eficiente, de acordo com os critérios científicos, e aprimorar tais

aspectos para um uso eficiente e racional. Nem sempre esses critérios

científicos têm sido observados e alguns psicólogos acabam por usar tais

práticas sem o devido cuidado e observação. Esses casos, seja daquele

que usa a prática mística como acompanhamento psicológico, seja o do

psicólogo que usa desse expediente sem critério científico comprovado,

são previstos pelo código de ética dos psicólogos e, por isso, passíveis

de punição. No primeiro caso, como prática de charlatanismo e, no

segundo, como desempenho inadequado da profissão.

Entretanto, é preciso ponderar que esse campo fronteiriço entre a

Psicologia científica e a especulação mística deve ser tratado com o

devido cuidado. Quando se trata de pessoa, psicóloga ou não, que

decididamente usa do expediente das práticas místicas como forma de

tirar proveito pecuniário ou de qualquer outra ordem, prejudicando

terceiros, temos um caso de polícia e a punição é salutar. Mas muitas

vezes não é possível caracterizar a atuação daqueles que se utilizam

dessas práticas de forma tão clara. Nestes casos, não podemos tornar

absoluto o conhecimento científico como o “conhecimento por

excelência” e dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar um tribunal

semelhante ao da Santa Inquisição. E preciso reconhecer que pessoas

que acreditam em práticas adivinhatórias ou místicas têm o direito de

consultar e de serem consultadas, e também temos de reconhecer, nós

cientistas, que não sabemos muita coisa sobre o psiquismo humano e

que, muitas vezes, novas descobertas seguem estranhos e insondáveis

caminhos. O verdadeiro cientista deve ter os olhos abertos para o novo.

Enfim, nosso alerta aqui vai em dois sentidos:

• Não se deve misturar a Psicologia com práticas adivinhatórias ou

místicas que estão baseadas em pressupostos diversos e opostos ao

da Psicologia.

• “Mente é como pára-quedas: melhor aberta.” É preciso estar aberto

para o novo, atento a novos conhecimentos que, tendo sido estudados

no âmbito da Ciência, podem trazer novos saberes, ou seja, novas

respostas para perguntas ainda não respondidas.

A Ciência, como uma das formas de saber do homem, tem seu

campo de atuação com métodos e princípios próprios, mas, como forma

de saber, não está pronta e nunca estará. A Ciência é, na verdade, [pg.27]

um processo permanente de conhecimento do mundo, um exercício

de diálogo entre o pensamento humano e a realidade, em todos os seus

aspectos. Nesse sentido, tudo o que ocorre com o homem é motivo de

interesse para a Ciência, que deve aplicar seus princípios e métodos

para construir respostas.

Texto Complementar

A PSICOLOGIA DOS PSICÓLOGOS

(...) somos obrigados a renunciar à pretensão de determinar para

as múltiplas investigações psicológicas um objeto (um campo de fatos)

unitário e coerente. Conseqüentemente, e por sólidas razões, não

somente históricas mas doutrinárias, torna-se impossível à Psicologia

assegurar-se uma unidade metodológica. (...)

Por isso, talvez fosse preferível falarmos, ao invés de “psicologia”,

em “ciências psicológicas”. Porque os adjetivos que acompanham o

termo “psicologia” podem especificar, ao mesmo tempo, tanto um

domínio de pesquisa (psicologia diferencial), um estilo metodológico

(psicologia clínica), um campo de práticas sociais (orientação,

reeducação, terapia de distúrbios comportamentais etc.), quanto

determinada escola de pensamento que chega a definir, para seu próprio

uso, tanto sua problemática quanto seus conceitos e instrumentos de

pesquisa. (...) não devemos estranhar que a unidade da Psicologia, hoje,

nada mais seja que uma expressão cômoda, a expressão de um

pacifismo ao mesmo tempo prático e enganador. Donde não haver

nenhum inconveniente em falarmos de “psicologias” no plural. Numa

época de mutação acelerada como a nossa, a Psicologia se situa no

imenso domínio das ciências “exatas”, biológicas, naturais e humanas.

Há diversidade de domínio e diversidade de métodos. Uma coisa, porém,

precisa ficar clara: os problemas psicológicos não são feitos para os

métodos; os métodos é que são feitos para os problemas. (...)

Interessa-nos indicar uma razão central pela qual a Psicologia se

reparte em tantas tendências ou escolas: a tendência organicista, a

tendência fisicalista, a tendência psico-sociológica, a tendência

psicanalítica etc. Qual o obstáculo supremo impedindo que todas essas

tendências continuem a constituir “escolas” cada vez mais fechadas, a

ponto de desagregarem a outrora chamada “ciência psicológica”? A meu

ver, esse obstáculo é devido ao fato de nenhum cientista,

conseqüentemente, nenhum psicólogo, poder considerar-se um cientista

“puro”. Como qualquer cientista, todo psicólogo está comprometido com

uma posição filosófica ou ideológica. Este fato tem uma importância

fundamental nos problemas estudados pela Psicologia. Esta não é a

mesma em todos os países. Depende dos meios culturais. Suas

variações dependem da diversidade das escolas e das ideologias. Os

problemas psicológicos se diversificam segundo as correntes ideológicas

ou filosóficas venham reforçar esta ou aquela orientação na pesquisa,

consigam ocultar ou impedir este ou aquele aspecto dos domínios a

serem explorados ou consigam esterilizar esta ou aquela pesquisa,

opondo-se implícita ou explicitamente a seu desenvolvimento. (...)

Hilton Japiassu. A psicologia dos psicólogos.

2. ed. Rio de Janeiro, Imago, 1983. p. 24-6. [pg. 28]

Questões

1. Qual a relação entre cotidiano e conhecimento científico? Dê um

exemplo de uso cotidiano do conhecimento científico (em qualquer

área).

2. Explique o que é senso comum. Dê um exemplo desse tipo de

conhecimento.

3. Explique o que você entendeu por visão-de-mundo.

4. Cite alguns exemplos de conhecimentos da Psicologia apropriados

pelo senso comum.

5. Quais os domínios do conhecimento humano? O que cada um deles

abrange?

6. Quais as características atribuídas ao conhecimento científico?

7. Quais as diferenças entre senso comum e conhecimento científico?

8. Quais são os possíveis objetos de estudo da Psicologia?

9. Quais os motivos responsáveis pela diversidade de objetos para a

Psicologia?

10. Qual a matéria-prima da Psicologia?

11. O que é subjetividade?

12. Por que a subjetividade não é inata?

13. Por que as práticas místicas não compõem o campo da Psicologia

científica?

Atividades em grupo

1. Você leu, no texto, que existem a Psicologia científica e a psicologia

do senso comum. Supondo que o seu contato até o momento só tenha

sido com a psicologia do senso comum, relacione situações do

cotidiano em que você ou as pessoas com quem convive usem essa

psicologia.

2. Baseando-se no texto e na leitura complementar, responda por que

falamos em Ciências Psicológicas e não em uma Psicologia.

3. Discuta nossa apresentação da Psicologia científica — sua matériaprima

e seu enfoque. Para isso, retome as respostas que cada

membro do grupo deu às questões 10, 11, 12 e 13.

4. Verifique quantas pessoas do grupo já procuraram práticas

adivinhatórias. A partir da leitura do texto, discuta a experiência. [pg.29]

Bibliografia indicada

Para o aluno

Para o aprofundamento da relação ciência e senso comum,

indicamos o capítulo 10 do livro Filosofando introdução à Filosofia,

de Maria Lúcia Aranha e Maria Helena P. Martins (São Paulo, Moderna,

1987), e o capítulo 3 do livro Fundamentos da Filosofia ser, saber e

fazer, de Gilberto Cotrim (São Paulo, Saraiva, 1993).

Esses dois livros podem ainda ser utilizados para explorar melhor o

método científico (no Filosofando introdução à Filosofia, o capítulo

14, e no Fundamentos da Filosofia, o capítulo 12).

Quanto ao aprofundamento da questão do objeto das ciências

humanas, sugerimos ainda as partes 1 e 2 do capítulo 16 do

Filosofando introdução à Filosofia.

Para o professor

Para o aprofundamento das questões colocadas no texto,

sugerimos a introdução do livro A construção da realidade, de Peter

Berger e Thomas Luckmann (Petrópolis, Vozes, 1983), onde os autores

discutem e apresentam com muita profundidade a relação

realidade/conhecimento.

Quanto à questão específica da Psicologia e psicologias, seus

objetos, seus métodos e a definição do fenômeno, indicamos o livro A

Psicologia dos psicólogos, de Hilton Japiassu (Rio de Janeiro, Imago,

1983). Esse livro supõe um bom conhecimento das teorias e sistemas

em Psicologia, já que procura discuti-los do ponto de vista metodológico.

Não é uma leitura fácil, mas importantíssima para os psicólogos.

Ressaltamos a introdução e o capítulo 1.

Indicamos, ainda, para aprofundamento da questão da Psicologia,

o livro Psicologia da conduta, de José Bleger (Porto Alegre, Artes

Médicas, 1987), que aborda a Psicologia do ponto de vista de seu objeto

de estudo. [pg. 30]